Projetos auxiliam
vizinhos a transformar terrenos baldios em hortas orgânicas, criando
fontes de trabalho e produzindo alimentos frescos e saudáveis para
bairros carentes
São Paulo – Ao volante da caminhonete, Hans Temp aponta terrenos
vazios na zona leste de São Paulo. Estão tomados pelo matagal – quando
não, se transformaram em depósito de entulho. Com os vidros fechados por
causa da chuva, voltamos de uma horta comunitária que a ONG Cidades Sem
Fome, idealizada por Hans em 2004, ajuda a manter no bairro de São
Mateus. Onde hoje se veem dezenas de canteiros com pés de alface,
rúcula, alho poró, milho e muitos outros alimentos, há quatro anos havia
muita tranqueira. "Nem sei quantos caminhões foram tirados daqui",
lembra Hans.
Por Tadeu Breda, da Rede Brasil Atual
Apesar do nome e sobrenome germânico, Hans é gaúcho. Estudou
administração de empresas no Rio de Janeiro e veio para São Paulo depois
de um curso de agroecologia na Alemanha. A experiência no país de seus
avós mudou os rumos da sua vida. "Lá existe uma cultura muito forte de
plantar coisas em casa. E não é porque não tenham dinheiro pra comprar
comida", analisa. "Por causa da guerra, o cara mais milionário cultiva
uns pés de tomate por hobby ou flores pra enfeitar a casa." Foi quando
Hans teve um estalo: no Brasil há muitos espaços disponíveis dentro das
cidades, um monte de gente que precisa trabalhar, ganhar dinheiro e
comer – e não fazemos nada.
Daí nasceu o projeto, que se propôs a aproveitar terrenos ociosos e
transformá-los em terra produtiva. Com equipe reduzida, a ONG Cidades
Sem Fome oferece assistência a 21 hortas apenas na capital paulista,
todas elas em bairros carentes. Os agricultores são selecionados na
própria vizinhança.
"Normalmente, é gente com idade mais avançada, com
55 ou 60 anos, que acaba ficando fora do mercado de trabalho por ter
pouca qualificação profissional", define Hans. "Eles começam a plantar,
têm alimento diversificado para seu autoconsumo e comercializam todo o
restante. No final do mês, repartem o dinheiro." Antes, porém, é preciso
conseguir a terra. "Usamos espaços que não são aproveitados, mas que
têm dono. São terrenos da prefeitura, de igrejas, da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) e de empresas públicas."
Quando visitei a sede do Cidades Sem Fome, em janeiro, Hans me levou
para conhecer duas hortas que ajuda a manter: uma delas embaixo de
linhas de transmissão da AES Eletropaulo, no bairro de São Mateus, e
outra, em cima de oleodutos da Petrobras, em Sapopemba. Eles pedem
autorização para usar a área, apresentam um projeto aos proprietários,
assinam um contrato de comodato e, só quando está tudo devidamente
legalizado, começam a trabalhar. Os terrenos que Hans me apontou
enquanto rodávamos pela zona leste de São Paulo eram todos da Petrobras.
- Áreas sem uso em baixo de linhas de transmissão ou em cima de oleodutos podem ser aproveitados para agricultura (Foto: Gerardo Lazzari/RBA)
"Esses dutos existem pelo país inteiro, principalmente no litoral,
onde estão as grandes cidades brasileiras", contabiliza. "Daria pra
beneficiar milhares de pessoas." É sua utopia. Enquanto não pode
concretizá-la, capricha nos espaços que já foram conquistados. Hans me
leva até uma das hortas-modelo que lhe enchem de orgulho, coordenada por
Genival Morais de Farias. Com 63 anos, seo Genival não está bem. Há
pouco tempo foi atropelado por um ônibus e tem o braço esquerdo
atravessado por pinos de metal. Os dois dias em que ficou internado,
garante, foram os únicos em que não trabalhou na horta.
"Estou aqui todo dia, de domingo a domingo." Mas bastou receber alta
para retomar a lida – e nem a tipoia azul que sustenta o braço ferido
impede seo Genival de andar pra lá e pra cá, mexer a terra e mostrar sua
obra para os visitantes. "Me encho de orgulho", revela, com a
desenvoltura de quem já concedeu muitas entrevistas e apareceu mais de
uma vez em programas de televisão. "Essa é minha mata. Eu sempre gosto
de ter uma mata dentro da horta porque traz muitas coisas boas da vida,
as brabuletas, os passarinhos e as amoras pra comer." Mas as flores de
seo Genival cumprem mais que uma função poética no terreno. "Os insetos
vão nas flores e não vêm nas minhas hortaliças."
A variedade dos produtos cultivados no terreno também transcende a
mera boa vontade de oferecer todo tipo de verduras, frutas e legumes
para a clientela. "A biodiversidade se encarrega de fazer o controle das
pragas", anota Hans. "Mas, ainda assim, quando dá muito pulgão, a gente
usa caldo de fumo, cinzas, sempre temos uma solução orgânica." Tudo o
que se colhe na horta do seo Genival é cultivado sem adição de
agrotóxicos. E os vizinhos adoram. "Aqui você compra tudo verdinho na
hora, não é que nem no supermercado", diz um cliente que veio em busca
de pés de alface, mas acabou levando também espigas de milho. "O preço é
um pouquinho salgado, mas sei que estou comendo uma coisa que não tem
veneno."
Consumo local
Para Hans, não basta que a horta seja cultivada em regiões carentes –
é importante que os produtos sejam comercializados no próprio bairro.
"Não faz muito sentido fazer projeto social, pegar dinheiro público,
montar uma horta maravilhosa, produzir uma alface linda e vender pra
mulher do embaixador lá em Higienópolis." O diretor da ONG lembra que o
projeto tem ainda um viés de segurança alimentar. "A dieta do pessoal
aqui está muito baseada em arroz, feijão, farinha, refrigerante e alguma
mistura – quando tem. Com a horta, você consegue mudar os hábitos de
quem mora no entorno."
- Netos de alemães, Hans buscou inspiração no costume germânico de cultivar hortaliças dentro da cidade para desenvolver projeto no Brasil (Foto: Gerardo Lazzari/RBA)
Depois de conhecer o trabalho do seo Genival, mais consolidado, pedi a
Hans que me levasse a uma horta em estágio inicial. A diferença é
gritante, inclusive no entorno. Paramos a caminhonete em frente a uma
boca de fumo em Sapopemba e entramos por um portãozinho em meio a
olhares desconfiados, mas respeitosos. Hans não se importa: quer apenas
tocar o projeto adiante – e nos lugares que realmente precisam, como os
rincões da zona leste. Ao contrário da horta-modelo do Cidades Sem Fome,
a nova roça que Hans está ajudando a implementar ainda está com a terra
avermelhada e cheia de pedras. "Ainda precisa de bastante trabalho
aqui."
Isso não quer dizer que já não cresçam repolhos pelos canteiros que
foram improvisados no lugar. "Vai ficar bonito igual à do seo Genival."
Se for verdade, os agricultores poderão tirar dali entre R$ 600 e R$ 1
mil por mês com a venda de hortaliças, como ocorre lá, além de ter algum
alimento saudável e variado para compor as refeições todos os dias. A
viabilidade econômica do projeto é uma das cartadas mais fortes de Hans
na hora de argumentar com o poder público, com quem, conta, não tem tido
uma boa relação. A prefeitura de São Paulo afirma que, paralelamente às
ONGs, também presta assistência técnica aos agricultores da zona leste
dentro do Programa Municipal de Agricultura Urbana e Periurbana
(Proaurp).
"Acreditamos que essas hortas têm grande potencial de abastecer
localmente", avalia Tiago Janela, diretor do Departamento de Agricultura
e Abastecimento da prefeitura. "Se cada espaço ocioso dentro da cidade
conseguir produzir hortaliças, é possível fornecer aos vizinhos e até a
feiras na região." Além da assistência prestada pelo Proaurp, a
administração municipal mantém uma Casa de Agricultura na região e, em
São Mateus, articulou a organização de uma cooperativa, cujo primeiro
presidente foi justamente seo Genival. Mas Hans acha pouco. "Precisamos
fazer mais modelos como este, deixar bem arrumado, e mostrar aos nossos
dirigentes que esse projeto é viável. Assim poderão reproduzi-lo em
escala no município todo", propõe. As barrigas agradecem.
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